domingo, 8 de fevereiro de 2009

Trote universitário favorece lógica de opressão social

Trote universitário favorece lógica de opressão social
Por André Azevedo da Fonseca 05/02/2004 às 09:35
É trágica a primeira lição aprendida na universidade: os que sabem mais têm o direito natural de subjugar os que sabem menos.
Em um largo período da Idade Média, havia em diversas regiões uma deslavada tradição de festas carnavalescas que debochavam do ridículo da vaidade e das pretensões de superioridade dos homens. Esses rituais cômicos ocupavam um lugar muito importante no cotidiano medieval, pois cumpriam o papel de, pelo menos durante os festejos, nivelar os estratos sociais dos habitantes de uma comunidade, igualando-os em sua humanidade, independente do ofício ou posição de cada um. As Festas do Asno, as Festas dos Loucos e a Festa dos Bobos, por exemplo, eram momentos nos quais as pessoas saíam pelas ruas praticando bobagens e maluquices. Um ingrediente tornava esses festins ainda mais hilários: a entusiasmada participação da igreja. O antropólogo José Carlos Rodrigues, no livro O corpo na história, assim descreve a Festa dos Bobos: Nela, em lugar de incenso, os padres usavam excrementos; em vez de benzer com água-benta, abençoava-se com urina. Terminada a missa, saía-se em uma espécie de cortejo, durante o qual os sacerdotes eram transportados em uma carroça carregada de excrementos, onde afundavam as mãos para retirar porções que atiravam sobre a população ? cometimento que alternavam com o gesto de urinar escancarada e debochadamente por cima das pessoas. (RODRIGUES, 1997, p.87) Nós, contemporâneos do século 21, evidentemente encaramos esse hábito como o contrário de tudo aquilo que chamamos "civilizado". O autor até compreende que, para a maioria das pessoas, essa tradição pareça o inverso do que consideramos ser "humano". Apesar disso, argumenta que é um erro procurar interpretar costumes do passado através de uma psicologia baseada na mentalidade de hoje, pois a relação lógica que o homem medieval mantinha com os excrementos, com o lixo e a com morte era, evidentemente, diferente da que temos hoje. A putrefação, os dejetos, os cadáveres ? que nos causam tanto espanto e repulsão ? eram entendidos como parte natural do ciclo da vida e da morte. Assim, aquela visão carnavalesca do mundo transformava essas coisas "ameaçadoras" em algo "inofensivo, alegre e luminoso". Trata-se, portanto, de uma questão eminentemente cultural. Mesmo assim, é difícil admitir, no atual tempo histórico, uma tradição festiva caracterizada por esparramos de urina e excremento nos foliões. Definitivamente, não condiz ao momento cultural da dita civilização ocidental. Naturalmente, isso não quer dizer que superamos todas as tradições que futuramente serão vistas como extravagantes, ou mesmo que tenhamos nos livrado sequer de costumes que já hoje se mostram abomináveis. Persiste com certa vitalidade nos meios acadêmicos, por exemplo, uma prática que talvez seja a semente da justificativa moral da odiosa estratégia de dominação social. Trata-se do trote universitário. Para alcançar esta hipótese, entretanto, é preciso analisar, primeiramente, três pontos chaves. As justificativas Há três afirmações básicas em que veteranos se ancoram para justificar o trote. Primeiro: é tradição. Todos fazem e sempre foi feito. Segundo: é uma brincadeira. Faz-se por diversão. Terceiro: promove a integração entre calouros e veteranos. À maneira de Platão, vamos analisar uma a uma. Sobre o trote ser uma tradição, podemos dividir as opiniões do debate, portanto, da seguinte maneira: existe quem queira conservá-la ? os conservadores ? e quem a abomine e deseje instituir um novo comportamento ? os rebeldes, ou progressistas. Naturalmente, é difícil desvendar a psicologia de uma tradição enquanto ela ainda está vigente, pois o que se torna hábito ? ou um mito, como será visto adiante ? é feito de forma automática, e as intenções que o fundamentam ficam escondidas sob sua solidez. Todo fenômeno que acompanha a inércia do hábito aparenta, de fato, ares de verdade inelutável. Pierre Bourdieu refletiu sobre este problema, que chamou de "violência oculta". Suas análises das práticas culturais utilizam essa noção de habitus ? termo que designa certo sistema estável de disposições a perceber e agir, que concorrem para reproduzir uma ordem social estabelecida, em suas desigualdades. Percebemos, entretanto, que em períodos cíclicos manifesta-se na comunidade acadêmica certa inquietação sobre a legitimidade do trote. Porém, esse desconforto é expresso em um debate muito pobre entre conservadores e progressistas: estes não o querem "porque não!" e aqueles o querem "porque sim!". Alguns abusos que acabaram levando calouros à morte chamaram a atenção da opinião pública sobre os limites das "brincadeiras". Contudo, não são os excessos ? ou as exceções ? os objetos desta análise. O que se deseja verificar é o sentido do trote, assim como seus propósitos e motivações. Os defensores dessa tradição não são sequer capazes de conceituá-la, pois não há qualquer reflexão sobre a prática. Essa conduta lembra a técnica do reflexo condicionado, de Pavlov. Sem nos perdermos em detalhes, o procedimento básico experimentado pelo fisiologista russo era repetir mecanicamente os temas e sugestões de forma que o conceito ? qualquer que seja ? alcance ares de verdade natural e fique impregnado no comportamento. Entretanto, um outro conceito parece mais adequado. Roland Barthes esboçou, em Mitologias, uma teoria semiológica dos "mitos contemporâneos". Ele explica como o mito parece sustentar-se na linguagem cotidiana e faz passar por "naturais", ou "evidentes em si mesmos", valores parasitários do que chamou de "uma espécie de monstro: a pequena burguesia". O antropólogo Claude Lévi-Strauss também estudou os mitos como forma de linguagem e identificou os "mitemas" ? mitos particulares ? que, assim como os "fonemas", unidades básicas da linguagem, só adquirem sentido em sua combinação. Essas regras combinatórias formariam uma espécie de gramática que permitiria descobrir, por exemplo, o sentido desse mito. O trote, neste caso, poderia ser entendido como um mitema: no contexto de nossa sociedade, estaria servindo ao mito do direito natural de dominação da maioria pobre por uma elite minoritária. Aí está a grande dificuldade encontrada pelos progressistas para dissuadir os conservadores que defendem a manutenção do trote. Como já observou o escritor irlandês Jonathan Swift, "você não pode dissuadir alguém pelo raciocínio de uma convicção a qual ele não foi levado pelo raciocínio". Um conceito, contudo, é ponto pacífico para as duas tendências divergentes: uma sociedade avança na medida em que tradições obsoletas desmoronam para que novos conceitos sejam erguidos e, aos poucos, solidifiquem-se em uma nova tradição. A afirmação de que o trote é uma brincadeira, uma coisa divertida, também mostra-se perfeitamente falsa. Uma brincadeira presume conivência explícita entre os participantes. Se um não aceita, não é mais diversão: é coerção, opressão, ou, na linguagem popular, uma "brincadeira besta". A atual geração de calouros está se mostrando mais resistente ao trote. Percebe-se que brincadeirinhas estúpidas estão gerando antipatias mais ou menos profundas. Existe, porém, o caso do jogo, onde um dos adversários ganha e o outro necessariamente perde. Entretanto, o pressuposto é que ambos concordam com as regras. Um jogo onde as normas são elaboradas para o desfrute exclusivo do mais forte ? ou mais graduado ? não é legítimo, e o mais fraco ? ou o menos graduado ? deve protestar com veemência. Sartre dizia ser detestável a vítima que respeita seu carrasco. Evidentemente, há calouros que se sujeitam aos constrangimentos do trote, mas isso vamos analisar mais a frente. A questão da integração entre calouros e veteranos esbarra na fronteira onde esta argumentação pretende superar. Veteranos afirmam que as humilhações impostas são uma maneira de unir os estudantes. Mas esta união, como se vê, carrega um discurso muito claro: é perfeitamente realizável, desde que todos se coloquem nos seus "devidos lugares", ou seja, o veterano entende que sua graduação automaticamente justifica a dominação ao calouro que mal começou. Portanto, sente-se no "direito natural" de, por causa desta hierarquia, esculhambar o novato à vontade. A integração é feita na medida em que o calouro aceita a submissão como um valor evidente em si; o rebaixamento servil está diretamente relacionado à seu "baixo grau de instrução". De acordo com essa mentalidade, os calouros que não aceitam ser diminuídos estão agindo contra a harmonia da integração. Como se vê, é trágica a primeira lição aprendida na universidade: os que sabem mais têm o direito natural de subjugar os que sabem menos. Trote sem fim Vamos dar mais um passo no raciocínio. O que podemos perceber, com muita clareza, é que a lógica que sustenta o trote ? a dominação do sujeito "mais instruído" sobre o "menos instruído" ? já está presente nos primeiros dias de universidade e não acaba na formatura. O sujeito que sofre e depois aplica o trote durante todo o período universitário está convencido dessa "verdade natural" e continua aplicando o trote nos calouros da vida. Um professor que humilha os estudantes em sala de aula continua aplicando o trote, pois raciocina que a graduação concluída lhe dá o direito natural de subjugar os "ignorantes" que ainda não a concluíram. É a tradição. Um chefe que diariamente constrange sua subalterna com ameaças e intimidações descabidas é o universitário que continua aplicando o trote no calouro. É divertido. Um professor-doutor que ridiculariza uma zeladora está exercendo os direitos que lhe conferem a titulação. É a integração. Isso explicaria o fato, citado anteriormente, de muitos calouros aceitarem submeter-se às opressões do trote. Na sociedade brasileira, caracterizada por diferenças sociais profundas que inviabilizam o acesso à educação superior para a maior parte da população, o universitário é um calouro privilegiado. Em vista disso, muitos preferem ser coniventes porque a humilhação sofrida é a maneira de confirmar a tradição e justificar a futura tirania, garantindo o círculo vicioso. Aquelas milhões de pessoas que nunca conseguirão concluir sequer o primeiro grau serão os eternos calouros desse exército de veteranos. Ê bicho burro! Limpa isso aí de novo senão vai ser demitido agora mesmo! E olha que estou sendo bonzinho! Quem mandou ser analfabeto? O trote sofrido no ingresso à universidade parece ser, portanto, uma pequena contribuição a pagar para manter a lógica da dominação que, para um estudante de nível universitário, num futuro próximo, será altamente favorável. Se aquela tradição medieval da Festa dos Bobos parece-nos, no mínimo, anti-higiênica, sua simbologia, ao contrário, mostra-se bastante saudável: pretendia igualar os estratos sociais. É mais ou menos o que significava, nas origens, o carnaval brasileiro (hoje, sabemos que caracteriza-se como mais um ritual segregador: ricos no camarote e pobres do lado de fora). A tradição do trote, ao contrário daquela festa medieval, legitima a manutenção das diferenças sociais ? no caso, simbolizada através do grau de instrução. Entre os defensores do trote, podemos perceber uma trágica contradição entre o discurso e a prática. É frequente encontrar veteranos que se dizem contra a opressão social, mas favoráveis à tradição do trote. O escritor Henry Thoreau, em A desobediência civil, aponta para esse paradoxo de forma bastante didática: "Existem milhares de pessoas que se opõem teoricamente à escravidão e à guerra, e que, no entanto, efetivamente nada fazem para dar-lhes um fim; (...) O que devemos fazer, de qualquer maneira, é verificar se não nos estamos prestando ao mal que condenamos", escreve. Ainda assim, defensores do trote teimam em justificar suas ações com estereótipos ? o trote é uma brincadeira, uma forma de integração, os calouros devem aceitar a tradição, etc. Mas o educador Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido, decifra o sentido dessa argumentação ao escrever que "na verdade, o que pretendem os opressores é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine".

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